O "noturno" vara a noite silvando surdamente. Carrega em seu bojo seres humanos que roncam, sacolejam a cada grito de um pesadelo íntimo, na ante-véspera da metamorfose.
Companheiros, sem o mesmo destino, ajeitam-se como podem. Homens, mulheres, crianças, esperam o passar do tempo e dos trilhos.
A locomotiva arfa, bufa, despeja fogo, fumaça, fagulhas. Os vagões de madeira estam. E o embate das rodas contra o aço dos trilhos é a sinfonia que abafa o som do universo.
O martelar constante do trepidar do trem hipnotiza os passageiros. Lentamente, aprofundam-se num mundo de lembranças e sonhos.
João busca alívio para a dor da partida, o largar para trás uma cidade, esperanças.
Embarcara de madrugada, na friorenta estação de Mariana. Não havia ninguém para acenar. Carregando solitário suas malas e mágoas, subira rápido no trem, antes que partisse sem levá-lo, como num pesadelo...
No vagão repleto e escuro, vê rostos cansados, a palidez do sono, olhar esgazeado do sonâmbulo, o desespero estampado na face do insone.
E Paulo permanece longo tempo na praça, sentado no banco de granito. Abatido. Não adivinhava sua próxima "tragédia", ir para um seminário. A revelação maior ressoava aos seus ouvidos: "Estou grávida!"
Cabisbaixo, à espera do trem que vem do Rio de Janeiro, Paulo é praticamente despachado como uma encomenda. Mal a composição pára pula para dentro do vagão, alheio ao movimento dos passageiros. Despedidas ríspidas, ressentidas. O trem dá a partida. Vira-se para o companheiro de plotrona. Dorme. Alivia-se. Não deseja falar, sorrir, ser cortês, com ninguém, até o fim da viagem.
SEMINÁRIO DE MARIANA, destino comum dos dois.
Rose passa os dias à janela. Como toda jovem de Mariana sonha com outras terras, paragens, conseguir um bom casamento. Meiga, educada, filha única de um casal tranquilo, de vida bem assentada e de tradicional família da cidade. Recatada, distrai-se em conversas com amigas. A maior ousadia, é desfilar no "footing" após a missa de domingo na Catedral da Sé. A diversão delas é flertar com rapazes galantes. Participa dos corais da Igreja de Nossa Senhora do Carmo. Vive num mundo de fantasias, o tempo passando lentamente. Vibra com o nascer do sol e se enternece com o crepúsculo. Nos dias de chuva acompanha o correr das águas pelo calçamento de pedras pé-de-moleque, observando os círculos formados pelos pingos nas poças, o gotejar das telhas. Inspira com deleite o cheiro úmido da chuva, arrepia-se com frio. Exitada, molha o rosto com os respingos. Em noites insones observa as estrelas, o firmamento, o universo. Como das outras vezes, à espera do inusitado, em noite de lua cheia, brilante, instigadora da imaginação. Escuta pisadas apressadas. Um sombra, esgueirando-se pela rua deserta. Deseja detê-lo. Curiosa em saber do que foge, debruça-se na janela. Um vento fino bate no rosto, mexe-lhe os cabelos soltos. A leve camisola tremula sobre o corpo delgado. O estranho aproxima-se desajeitado, cambalente. Tropeça e cai. Depois de algum tempo ajeita-se, sentado na calçada. Receosa, mas querendo fazer contato, assovia. Ele mal levanta a cabeça. Assovia novamente, expondo-se mais, abrindo de todo os batentes. Nota o olhar ansioso dele. Enrubesce ao ser localizada. Refugia-se, emoldurada pela escuridão do quarto. puxa a cortina.
2 comentários:
Gosto de João e de seu jeito atabalhoado de querer ser. De uma maneira geral, o personagem identifica-se. Mais em seus monólogos que nos seus relacionamentos, acho. Talvez falta aos outros a força que sobra no interlocutor. Parece-me que Maurício, Paulo e Márcio merecem ser desenvolvidos, como o foram, qualitativamente, Ana , Beatriz, e, quantitativamente.
Na primeira parte, a situação familiar poderia dispensar alusões à classe média, evidenciada nas ações. O colégio marista, com seu retiro espiritual, é mais demonstrativo da mentalidade dominante do que todas as referências a novenas, promessas e orações.
A segunda parte começa com uma das páginas mais bonitas em que já botei os olhos: o nascimento. Na essência, perfeita. A forma, um tanto rebuscada, se a compararmos com o restante. Loren tem alguma coisa que soa falsa. ela é inteligente, resoluta, meiga, arrebatada e fria? Mariá é a paixão, Rose é a paz intermitente, Ana é a ambigüidade. Ah, ia esquecendo do quão fascinante é a pureza de João! Desde o momento em que, culposamente, espia o modelo que posa nua, passando por todos os arroubos - amorosos ou não, sua entrega é total. Reconheço ser fácil burilar o trabalho alheio. Estas devem ser consideradas apenas como impressão da amiga que se sente feliz por ter conhecido essas pessoas criadas por você.
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